Medida por Medida, de William Shakespeare
Quem nunca tiver pecado, que atire a primeira pedra.
“Não julguem, e vocês não serão julgados. De fato, vocês serão julgados com o mesmo julgamento com que vocês julgarem, e serão medidos com a mesma medida com que vocês medirem.” (Evangelho de Mateus, capítulo 7, versículos 1 e 2).
“A pressa sempre recompensa a pressa, e com morosidade é que se responde à morosidade. Uma coisa só fica quite com coisa igual, sempre medida por medida.” (Medida por Medida, de William Shakespeare, ato V, cena I).
Em 1603, quando provavelmente escreveu Medida por Medida, William Shakespeare (1564-1616) já gozava da reputação de grande dramaturgo e homem de teatro bem sucedido. O Globe Theatre já tinha sido construído e a Lord Chamberlain’s Men, companhia teatral em que ele era artista e sócio, já passara a ser a King’s Men, em patente real outorgada por Jaime I após a morte da Rainha Elizabeth.
Me ocorre que essa segurança material, advinda de boas oportunidades e bom senso por parte de Shakespeare, tenha contribuído com a segurança artística que ele passa a imprimir em suas peças a partir do final da década de 1590 e início dos anos 1600, quando produz suas melhores peças, como Hamlet, Rei Lear, Otelo e A Tempestade, que quando comparadas a peças anteriores, demonstram um progressivo refinamento da técnica, como maior profundidade nos personagens e diálogos mais ricos em termos de retórica. Uma das peças desse período é Medida por Medida, na qual o bardo conduz um drama acerca das noções de justiça e poder, e que foi a minha primeira leitura de 2024.
Nota: pessoalmente, não me incomodo com spoilers, ainda mais de textos clássicos. Se esse for o seu caso também, continue lendo. Se não, que tal fazer a leitura da peça primeiro e depois voltar aqui? Não quero ser acusada de estragar sua experiência.
Acho cada vez mais difícil responder à pergunta sobre qual é a minha peça favorita de Shakespeare. Há vários anos respondo que é Rei Lear, por conta da inesgotável discussão sobre velhice, amor e sangue, mas também penso com frequência em Otelo e até mesmo em peças menos conhecidas, como Trabalhos de Amor Perdidos. Medida por Medida surge como mais uma obra que dificulta minha resposta, pois que depois da leitura fiquei vários minutos contemplando o nada, repassando as cenas e pensando que Shakespeare facilmente contemplou a maioria dos dramas humanos em sua produção.
Os cinco atos de Medida por Medida
Medida por Medida é uma peça dividida em cinco atos, uma estrutura clássica muito utilizada por Shakespeare, onde cada ato está ligado a uma parte no desenrolar da trama. No primeiro ato, acontece a exposição da ação, sobretudo aquelas relacionadas a onde e quem. O segundo ato apresenta a ação crescente, portanto as complicações, que darão ao terceiro ato a possibilidade de apresentar o ponto de virada, o clímax da ação. O quarto ato é marcado pelo desfazer desse clímax e no quinto (finalmente!) a resolução. É claro que essa não é uma fórmula que foi seguida obedientemente por Shakespeare, mas é possível sim reconhecer alguns elementos de cada uma nos atos de Medida por Medida.
O Primeiro Ato - A viagem do Duque e a Prisão de Cláudio.
A ação do primeiro ato começa com a viagem do Duque Vicêncio, que deixa Viena e seu governo nas mãos de Ângelo e Éscalo, sendo que ao primeiro entrega plenos poderes para fazer valer a lei conforme ache melhor. A observação de que possa agir como o próprio duque na ausência deste é enfatizada em vários momentos da rápida conversa. Destaco aqui um trecho da primeira cena deste ato:
Duque - […] A sua liberdade de ação é igual à minha no que tange a aplicar ou abrandar a lei: faça o que lhe parecer bom à sua alma.
O duque sai de cena e em seguid, após uma conversa truncada e hilariante entre cavaleiros e a cafetina Senhora Passada, descobrimos que o jovem Cláudio foi preso, e pelas palavras dessa dama é que o motivo é revelado:
Primeiro Cavaleiro - Cláudio na prisão? Não pode ser.
Senhora Passada - Não pode, mas tanto pode que eu sei que foi, porque eu vi ele sendo preso, sendo carregado, e o que é pior, daqui a três dias vai ser decapitado!
Lúcio - Mas, depois de todas estas nossas piadas, eu não queria uma coisas dessas. Tu tens certeza?
Senhora Passada - Certeza absoluta. E é porque ele deixou prenha a Madame Julieta.
Na cena seguinte, Lúcio resolve visitar o amigo Cláudio, e ambos travam um diálogo sobre as leis e a liberdade, repleto de trechos marcantes, como quando Cláudio se mostra bastante inconformado com a punição que está prestes a receber.
Cláudio - […] E o novo representante do Duque, seja porque lhe subiu à cabeça a novidade da posição que recém ocupa, seja porque a máquina do Estado é um cavalo e as rédeas estão na mão de quem governa, ele, agora na sela, para que a montaria saiba que ele sabe comandar, mal subiu, já lhe finca as esporas. Se a tirania está no próprio assento ou na eminência que toma assento, não sei dizer. Mas esse novo governante aplica em mim todas as penalidades arroladas que estavam (tal qual armadura enferrujada) suspensas na parede havia tanto tempo que dezenove voltas completas do zodíaco já se passaram sem nem que nenhuma delas fosse posta em prática. E agora, para fazer um nome, ele me enquadra no negligenciado e adormecido Ato Legal. Só mesmo para fazer um nome.
Embora pareça certo exagero condenar alguém à morte por isso, a lei estava sendo cumprida. Acontece que, como podemos ver pela fala de Cláudio, essa era parte de uma série de leis sobre fornicação que há tempos não eram mais levadas em consideração na cidade. Após dizer o que pensa sobre o novo representante do Duque, Cláudio pede que Lúcio vá ter com a irmã dele, Isabel, para que a moça interceda por ele. Isabel está prestes a entrar em um convento e segundo Cláudio, na juventude de sua irmã “há um dialeto mudo e dócil que comove os homens; além disso, ela é perita no jogo do discurso e da razão e na arte de persuadir.” Note aqui o paralelo da virgem intercessora, mais um dos elementos bíblicos que Shakespeare empresta à sua narrativa.
Logo em seguida, o Duque entra novamente em cena e numa rápida conversa com o Frei que lhe dá abrigo, descobrimos o motivo de sua rápida e misteriosa viagem. Embora tenha dito que ia a Polônia, o Duque pretende permanecer em Viena, afim de observar como as coisas acontecem em sua ausência. Ele observa que embora possuam leis muito rigorosas, elas há muito tempo deixaram de fazer sentido, pois as penalidades já não são aplicadas. E explica ao frei:
Duque - Assim é que, realmente, meu bom padre, impus a Ângelo essa incumbência, e ele poderá, escondido na sombra do meu nome, atingir o alvo na mosca e ao mesmo tempo, preservar de cair em desgraça, nessa briga, a minha pessoa.
Admito que aqui fiquei um pouco desapontada com o Duque: colocar sobre as costas de outro homem o peso de fazer valer a lei, para se preservar, não me parece algo muito correto. E esse é um ponto importante nessa peça: ninguém, por melhor que seja, está apto a ser considerado verdadeiramente honesto. Depois de explicar isso ao frei, ele adianta seu plano: andará pela cidade, disfarçado de irmão da ordem, procurando observar como se passam as coisas.
Ao fim desse primeiro ato, reencontramos Lúcio indo fazer o favor solicitado por Cláudio. Isabel está no convento, se preparando para fazer seus votos, quando é encontrada por ele. A princípio, ela se mostra cética da prisão do irmão, e ao saber o motivo, simplesmente diz: “Ora, ele que se case com ela.” Seria a solução a qualquer tempo, é claro, mas não no governo de Ângelo, que pretende fazer a lei ser cumprida à risca. Ao perceber em que tipo de mãos está a vida de seu irmão, Isabel concorda em tentar interceder por ele e ao admitir que tem dúvidas do sucesso da entrevista, ouve de Lúcio uma das mais memoráveis frases do bardo: “Nossas dúvidas são traiçoeiras e nos fazem perder o tanto de bem que muitas vezes poderíamos obter só porque receamos tentar.”
O Segundo Ato: O argumento de Isabel e a incoerência de Ângelo
A primeira cena do segundo ato abre com um diálogo fascinante entre Ângelo e Éscalo. Para o primeiro, a lei não pode ser um espantalho que em vez de assustar, acaba por se tornar poleiro de aves de rapina. Éscalo, sensibilizado com o destino de Cláudio, uma vez que conhecia o pai do rapaz e demonstra ter por ele muito respeito, procura dissuadir o superior, colocando-o no lugar do rapaz. Afinal, quem nunca pecou que atire a primeira pedra, não é mesmo? A fala de Éscalo remete justamente à essa conhecida cena bíblica em que Jesus Cristo dá uma lição nos fariseus acerca da mulher adúltera, mas o segundo em comando o faz com mais dedos e modos ao dizer que “se o senhor alguma vez em sua vida já não errou nesse ponto que agora nele o senhor condena […]”. Mas Ângelo é inflexível, esse arauto da virtude, e responde simplesmente que uma coisa é ser tentado, outra é cair na tentação. No entanto, como um Édipo profético diante de Tebas, Ângelo também dá pistas do desenrolar das coisas:
Ângelo - O senhor não pode querer mitigar o delito dele só porque eu tenha eventualmente passado por tais faltas, em vez disso, lembre-se: quando eu, que condenei Cláudio, cometer delito igual, deixe que o meu próprio julgamento de agora sirva de modelo e me condene à morte, e que nenhum argumento a meu favor seja admitido.
É curioso observar que todos os demais personagens se penalizam da situação de Cláudio. Além de Lúcio e de Éscalo, o oficial (preboste) que está responsável pelo caso também decide apelar “para não correr o risco de ser por demais severo”. Outro ponto curioso é que, assim como a situação da mulher adúltera mencionada nos evangelhos, aqui também só um dos amantes deve ser punido com a morte. Ângelo dá ordem para que “a fornicadora seja removida […] que tenha recursos; apenas o necessário, nada luxuoso.”
A entrada de Isabel, pedindo pela vida de seu irmão, diante de Ângelo é um dos melhores momentos deste ato. Timidamente, ela quer saber se é tarde demais e se o irmão precisa mesmo morrer, ao que Lúcio sussurra que ela está sendo fria. Talvez ele ache que ela poderia tentar seduzir Ângelo? Inesperadamente - e sem nenhuma intenção por parte de Isabel - é isso que acontece: num instante, Ângelo se vê completamente seduzido pela moça cujo irmão ele acaba de condenar à morte.
A retórica de Isabel é grandiosa e rende importantes reflexões dentro da ação dramática: ela questiona o jogo de poder, a misericórdia, a bondade humana, os vícios. E alerta: “não devemos nunca usar nossas próprias medidas para saber quanto pesa nosso irmão.” Encantado por esse discurso - ou mais provavelmente pela beleza de Isabel - Ângelo admite para si mesmo que o que a moça diz “faz sentido, o que me faz sentir que desperta e cresce por ela o meu desejo.”
Pouco depois, Ângelo questiona se ela estaria disposta a entregar o próprio corpo pela redenção do próprio irmão, assumindo que a ama e que pode salvar a vida de Cláudio caso se deite com o governante. Chocada e furiosa, Isabel ameaça denunciá-lo caso ele não dê imediatamente o perdão a Cláudio, levando a uma das falas mais notórias e reconhecíveis - especialmente para mulheres:
Isabel - Vou te denunciar, Ângelo, pode esperar. Assina para mim o imediato perdão de Cláudio, senão eu vou, com todo o volume que alcance minha garganta, gritar o mundo que tipo de homem tu és.
Cláudio - E quem vai te acreditar, Isabel? Meu nome imaculado, a austeridade de minha vida, uma declaração formal minha contra você minha posição no governo vão pesar tanto, mas tanto mais, que a sua acusação vai sufocar em suas próprias palavras e cheirar a calúnia.
Nesse ponto, não tive como não lembrar da pintura Suzana e os Anciãos, de Artemísia Gentileschi (da história pessoal de Artemísia nem vou comentar dessa vez). Ela mostra o momento em que os respeitáveis senhores assediam Suzana, que tomava banho em seu jardim e a ameaçam: ou ela se deita com eles, ou vão acusá-la ao seu marido e à toda cidade de estar sozinha no jardim com um rapaz. A história é contada no capítulo 13 do livro de Daniel (na versão católica, pois este e o capítulo 14 não aparecem na versão protestante). Nas duas situações, os homens sabem que as mulheres em questão serão descredibilizadas assim que contarem sua versão dos fatos, e em ambas, é graças ao “discernimento” de outro homem que elas conseguem a justiça.
O Terceiro Ato: A esperança de Cláudio e a Armadilha do Duque
Talvez esse seja um dos meus momentos favoritos nessa peça, não apenas pelo elegante plano engendrado pelo duque, mas pela hilariante falsidade de Lúcio e as boas intenções do responsável pelo caso de Cláudio. Saindo irritada da presença de Ângelo, Isabel vai ter com o irmão, que nesse momento recebe a visita de um misterioso frei, que não é outro senão o duque disfarçado. Cumprindo seu papel de religioso, o governante dá conselhos a Cláudio para que esse consiga lidar bem com a ideia de morrer e o jovem parece mesmo conformado. Quando Isabel conta que não conseguiu nada com Ângelo, ele primeiro se conforma com seu destino, mas quando ela diz ao irmão qual seria a única solução, ele tenta persuadi-la a aceitar. Claro que, apesar do amor e devoção que tem pelo irmão, Isabel - que estava certa de que ele jamais pediria a ela algo assim - fica novamente furiosa.
É interessante notar que dos três - Ângelo, Cláudio e Isabel - só ela se mantém coerente em suas opiniões e ações. Ângelo busca a virtude, mas ao se interessar pela moça, propõe a ela aquilo que levou Cláudio a prisão e consequente morte. Cláudio, por sua vez, a princípio concorda com a decisão de Isabel de não ceder, mas o medo da morte fala mais alto e ele implora que ela repense a recusa.
Cláudio - Doce irmã, deixe-me viver. O pecado que você cometer para salvar a vida de um irmão será perdoado pela natureza, um ato tão diferente que se transforma em virtude.
Isabel responde chamando o irmão de animal e outras palavras ternas assim, e o duque, ainda disfarçado, percebe que é sua hora de agir. Então ele oferece uma solução: que Isabel diga aceitar o convite de Ângelo, exigindo apenas a escuridão completa no local do encontro, pois no lugar dela quem vai entrar é outra moça, a ex noiva de Ângelo, Mariana, que foi abandonada por ele por perder uma parte de seu dote. Dessa forma, o governante interino seria desmascarado, obrigado a se casar com a mulher que abandonou - na melhor das possibilidades, porque a outra seria a pena capital - e Isabel continuaria mantendo sua virgindade. Tudo combinado, passa-se ao quarto ato.
O Quarto Ato: O resultado do plano e o cumprimento da pena
Tudo ocorre como combinado: Mariana vai ao encontro no lugar de Isabel. No entanto, surpresa: quando amanhece, Ângelo não cumpre sua parte no acordo. Em vez do esperado indulto, o que o oficial recebe é a confirmação não só de que Cláudio deve morrer, como também deve ter a cabeça levada à presença de Ângelo. Sim, todos nós entendemos que ele está passando dos limites, e o duque, sem se revelar ao oficial consegue convencê-lo a mandar outra cabeça no lugar da de Cláudio, que deve ser escondido por algumas horas (adoro essa “coincidência feliz”: alguém morreu na prisão e tinha cabelos e barba bem parecidos com os do prisioneiro, sinto que o renascimento foi um período histórico muito favorável aos disfarces que anos mais tarde contestaríamos em Superman).
Para fazer uma surpresa a Isabel, o duque não revela que Cláudio está vivo, dizendo à moça que infelizmente a vontade de Ângelo se cumpriu. Devo admitir que aqui fiquei preocupada com o resultado dessa omissão, uma vez que em Romeu e Julieta foi um pequeno mal entendido que matou dois adolescentes. Mas Isabel está longe de qualquer ideação suicida: seu primeiro impulso é amaldiçoar Ângelo, chorar pelo irmão e lamentar pela própria desventura. Ao final deste ato, temos a notícia de que o duque vai voltar e pretende que a troca de autoridade seja feita nos portões da cidade. Também no fim desse ato, Ângelo parece fazer um exame de consciência:
Ângelo - Uma virgem deflorada; e justo por um eminente membro do governo que impôs o cumprimento da lei contra esse mesmo ato? […] Não fazemos o bem que gostaríamos de ter feito e praticamos o mal, coisa que não nos agrada.
O Quinto Ato: A volta do Duque e a acusação contra Ângelo
Como combinado com Isabel, ela se apresenta diante do Duque, às portas da cidade, tão logo a autoridade é trocada e cumprindo o papel de governante (Isabel não sabe ainda que ele é o mesmo frei que tentou ajudá-la) rejeita a petição de Isabel, afirmando que é bizarro esperar que ele acredite em tal conduta por parte de um homem honrado como Ângelo. essa descrença por parte do duque é proposital e necessária para desmascarar o tirano substituto. Isabel é quase presa e sucessivos mal entendidos se sobrepõem, até que Mariana é chamada e admite ter se deitado com Ângelo, de quem ela era legalmente noiva e ao se ver acuado, ele resolve acusar a moça de leviandade como motivo para o rompimento do então noivado - junto com o dote insuficiente, claro. Por fim, e depois de mais uma sessão de troca de disfarces, o duque se revela, bem como traz à presença de Isabela seu irmão.
Ângelo é condenado à morte - o mínimo, se lembrarmos da sentença que ele proferiu a si mesmo anteriormente - mas é salvo pelas súplicas de Mariana e pela intercessão de Isabel, que prova ser realmente uma santa ao perdoá-lo, embora eu tenha certeza que ela só fez isso como forma de agradecer à Mariana pelo favor que salvou a vida de seu irmão e sua própria honra; minha grande questão é porque Mariana suplicou, podia ficar rica e viúva, já que o duque oficializou o casamento num instante ali mesmo, justamente para que ela herdasse os bens de Ângelo. Parece que ela ainda tinha por ele muito amor, afinal.O coração dos outros é terra que ninguém anda, já dizia minha avó.
Para fechar este ato e a peça, Shakespeare nos deixa feliz com o reencontro de Julieta e Claudio, o merecido castigo de Lúcio e um inusitado pedido de casamento do Duque a Isabela, cuja resposta podemos apenas tentar adivinhar. Torço pra que tenha sido sim.
Medida por medida: Tragédia ou Comédia?
Uma questão há muito levantada por quem estuda a obra de Shakespeare é a categoria que Medida por Medida ocupa em sua produção. Afinal, a peça seria uma comédia ou uma tragédia? Em geral, ela é classificada como comédia, embora Ivo Barroso, no texto de apresentação do livro na edição da L&PM aponte o fato de que se trata de uma das obras de maior tensão dramática do autor inglês. De minha parte, considero que a inserção de elementos cômicos, que dão à peça a possível colocação no rol de comédias, seja um recurso inerente à linguagem de Shakespeare. Em Hamlet, por exemplo, é famosa a cena dos trocadilhos entre os coveiros e até a suposta loucura de Hamlet ou a peça apresentada dentro da peça proporcionam momentos cômicos, mas nem por isso há que se duvidar que Hamlet seja uma tragédia. Mas será que essa classificação realmente importa?
Shakespeare traz à luz, em Medida por Medida, conceitos como justiça, poder, misericórdia e perdão, entrando no time dos grandes dramaturgos da antiguidade grega, que escreveram sobre isso em peças como Édipo, Antígona e As Fenícias. Os diálogos são rápidos - bate e volta que exigiam do público a atenção total para não perder nenhum trocadilho, nenhuma informação importante - e o desenrolar da peça depende, de muitas formas, de astúcia e controle emocional. Além disso, o dramaturgo também toca em outros pontos, como a hipocrisia, a descredibilização da palavra da mulher (ou de qualquer pessoa em situação de pouco/nenhum poder) e o medo da morte.
Ler Shakespeare sempre é, pra mim, uma experiência grandiosa. Medida por Medida, no entanto, me deixou tão fascinada, que tive que escrever um texto sobre ela, inaugurando assim os Cadernos de Dramaturgia do Noturno Girassol. Gosto quando a leitura me faz ter vontade de escrever, de compartilhar. No fim das contas, acho que é isso que nos liga como humanidade, a possibilidade de partilhar de alguma coisa.
Obrigada por acompanhar essa edição. Até nosso próximo drama,
Rute
Essa foi a primeira edição dos Cadernos de Dramaturgia, uma seção dentro da Noturno Girassol. Aqui eu falo sobre peças que leio e, com sorte, sobre montagens também. Se você encontrou essa edição por acaso ou recebeu de alguém, considere assinar pra receber a próxima direto no seu e-mail.