Deixa-me. Deixa que minha loucura se afunde em horrores.
— Antígona, no Prólogo.
Antígona é a sequência da trágica história de Édipo, rei de Tebas. Ela fecha a trilogia tebana (que inclui Édipo Rei e Édipo em Colono) e foi escrita aproximadamente em 442 a.C, por Sófocles, um dos mais conhecidos dramaturgos gregos do período helênico.
Como é mania de todo bom autor que atravessa séculos, não sabemos muito sobre Sófocles, apesar de termos mais informações sobre ele do que sobre alguns de seus pares. Celebrado em vida e vencedor de dezenas de concursos dramáticos em Atenas, foi ator, sacerdote e ocupou funções administrativas da pólis.
Sófocles foi responsável por algumas mudanças importantes para a tragédia grega, como a importância da cenografia, e de suas obras, apenas sete chegaram até nossos dias. Dentre elas, Antígona sempre me atraiu. Na faculdade (sou formada em Teatro) cogitei mais de uma vez aproveitar alguma disciplina para adaptar a peça como monólogo, ou montá-la na íntegra. Isso não aconteceu ainda, mas quem sabe? Enquanto não acontece, eu queria dedicar o texto de hoje à uma análise breve dessa peça, que li na edição da L&PM, com tradução do grego por Donaldo Schüler.
Nota: pessoalmente, não me incomodo com spoilers, ainda mais de textos clássicos. Se esse for o seu caso também, continue lendo. Se não, que tal fazer a leitura da peça primeiro e depois voltar aqui? Não quero ser acusada de estragar sua experiência.
Antígona é uma peça que me comove muito. Mais do que o drama familiar, penso que ela seja muito sobre honrar os mortos e ser fiel a si mesmo. A maneira como a tragédia se desenrola também é impactante e talvez por isso, dentre as peças de Sófocles, seja a minha favorita.
A estrutura de Antígona
Antígona está dividida em 5 episódios (ou atos), além do prólogo. Como eu já comentei aqui, essa é uma divisão clássica onde os atos correspondem a determinadas situações dentro da trama. Vale aqui nos aproximarmos da Pirâmide de Freytag, que pode ser utilizada pra gente visualizar cada uma dessas partes na peça, e tem esse nome por ter sido desenvolvida pelo dramaturgo alemão Gustav Freytag (1816-1895).
As peças da antiguidade grega não seguiam à risca esse modelo, que está mais ligado à dramaturgia shakesperiana, no entanto, é útil reconhecermos alguns elementos da peça de Sófocles nessa estrutura. No caso de Antígona, por exemplo, diferente do esquema acima, o prólogo é um episódio à parte dos outros 5 atos.
O Prólogo: Antígona e Ismene ou os dois lados da história
O prólogo aqui tem o papel de situar o espectador/leitor do onde, quem e o quê da peça. Antígona está em cena e conversa com a irmã, Ismene, sobre aquilo que vai ser o estopim para a história: um funeral justo para o irmão delas, Polinices.
Logo de princípio, Antígona relembra a maldição que há sobre a estirpe de Édipo, que na verdade é anterior à ele, uma maldição ainda ligada ao seu pai, Laio. É num tom de profunda angústia que a peça tem início com essas dolorosas palavras de Antígona:
Sabes de algum mal, dos que nos vêm de Édipo,
que Zeus não queira consumar em nossas vidas?
Nada - angústia, infortúnio
humilhação, desonra - não há
mal que eu não veja cair sobre ti, sobre mim.
E ela tem razão. Depois que uma peste se abate sobre Tebas, é preciso que se encontre o assassino do rei Laio, que é ninguém menos que seu próprio filho, Édipo, que ignorava sua origem. Depois de matar o rei, uma série de ocorrências - ou uma zombaria hostil dos deuses - leva Édipo a se casar com Jocasta, sua mãe e a ter com ela quatro filhos: Etéocles, Polinices, Antígona e Ismene.
Quando a verdade é descoberta, Jocasta se suicida, Édipo fura os próprios olhos e vai embora da cidade e o governo passa a ser de Creonte, irmão de Jocasta. Claro que tudo isso leva a um embate, que coloca os dois irmãos em lados opostos. Findo o conflito, quando Polinices e Etéocles morrem, ao mesmo tempo, um pela espada do outro, Creonte ordena que o que esteve ao seu lado - Etéocles - receba honrarias dignas em seu funeral, ao passo que ao segundo esse rito é interditado.
Quanto ao corpo de Polinices, infaustamente morto
ordenou aos cidadãos, comenta-se
que ninguém o guardasse em cova nem o pranteasse
abandonado sem lágrimas, sem exéquias, doce tesouro
de aves que o espreitam, famintas.
Creonte é a personificação do poder do Estado, da pólis, mas também o é da tirania. Ao interditar um rito da maior importância, dentro do contexto da antiguidade (e convenhamos, até os nossos dias) ele não apenas interfere no direito privado da família, mas sobretudo no luto. Creonte não impede apenas que o morto seja sepultado, mas que a família do morto, reduzida às duas irmãs, pranteie a sua perda. Uma crueldade, ainda mais quando consideramos o quadro de mazelas que se abate sobre a família, do qual, é bom que se lembre, Creonte também faz parte.
Ainda no prólogo, Antígona revela seu plano à Ismene: ela vai sepultar Polinices sim. Ismene fica chocada, porque as duas irmãs são duas partes de uma mesma história. Enquanto Antígona é a força advinda do respeito às tradições e aos ritos, da necessidade de dar a vida pelo que se acredita, Ismene é a noção de povo que obedece e não se compromete. Ela também observa um detalhe mais sutil, que não escapou à percepção do dramaturgo:
Vê que morte miserável teremos, se à força da lei
e à decisão soberana do tirano nos opusermos.
Põe na cabeça isso, mulheres somos
não podemos lutar contra os homens.
Há mais, somos dirigidas por mais fortes,
temos que obedecer a estas leis e a leis ainda mais
[duras.
Não julgo Ismene, porque imagino que depois de tanta desgraça na família, ela queria paz e passar o mais despercebida possível. Ao determinar sua posição - a de obedecer ao decreto de Creonte - Ismene provoca, sem o desejar, uma ruptura com a irmã, que pede apenas que a outra a deixe, que deixe que sua loucura se afunde em horrores.
Primeiro episódio: O atrevimento da desobediência de sepultar um irmão
O primeiro episódio começa com a entrada de Creonte, que em seu discurso inicial faz um comentário no mínimo curioso: ele diz que é impossível perscrutar quem quer que seja antes que a pessoa tenha poder. Acho isso curioso porque, como veremos no decorrer da peça, Creonte passa de braço direito de Édipo a um rei cruel, capaz de uma terrível atrocidade por mero capricho.
Ele reforça aqui a ordem de que Polinices permaneça insepulto e que seu cadáver seja “pasto para aves e para cães”. A justificativa do soberano é a que Polinices é mau, e que os maus jamais obterão dele “a honra devida aos justos”. O que a humanidade não cansa de mostrar, no entanto, é que bom e mau dependem sempre de quem está contando a história.
Logo depois do discurso de Creonte, chega um guarda, esbaforido, atemorizado e dizendo que só se apega à esperança de saber que nada sofrerá que não lhe tenha destinado a sorte. É que ele vem com uma mensagem ruim, e às vezes, o mensageiro de más notícias é penalizado apenas pela mensagem.
O que ele chega para contar é que o morto, ou seja, Polinices, foi sepultado, que alguém o cobriu com pó e fez as cerimônias fúnebres para sua passagem. Naturalmente, Creonte fica furioso e manda descobrir quem ousou desobedecer às suas ordens.
O diálogo de Creonte com o mensageiro é um dos poucos divertidos do livro, pois o pobre homem sabe que perturba o rei com uma mensagem tão ruim e como ele mesmo lembra, “ninguém estima um mensageiro com más notícias” e ele acaba sendo mais inconveniente, por conta de tanto medo.
Segundo Episódio: Antígona é descoberta e levada à presença de Creonte
Aqui começamos encontrando Antígona sendo trazida à presença de Creonte, ela foi pega pelos soldados depois de tentar mais uma vez sepultar o irmão (o rei dera ordens que se desfizesse a sepultura). A descrição do guarda sobre como encontrou Antígona desesperada ao ver o corpo novamente insepulto é de partir o coração:
Findo o furor, decorridos longos instantes
aparece a jovem, com agudos gemidos
canto de ave desolada ao ver vazio
o ninho, despojado o berço
[desaparecidos os filhotes.
Depois de toda sua narrativa e se considerando livre de qualquer retaliação de Creonte, o jovem guarda observa que “escapar às dificuldades é bem agradável, mas lançar pessoas na desgraça é doloroso”.
Com a saída dele, Creonte passa a interrogar Antígona, que não nega nenhuma palavra dita pelo guarda mensageiro. O rei pergunta, então, se ela por acaso não sabia do decreto, ao que ela responde que “como poderia ignorá-lo?”, afinal, ele o disse abertamente. Creonte, chocado com a desobediência, ouve ainda de Antígona que o poder que ele tem não tem o poder de superar as leis não escritas, perenes, dos deuses, uma vez que o rei é mortal. E mais: para ela, que vive num mar de aflições, a morte seria um lucro.
Creonte, enfurecido, diz que ele não será homem caso o atrevimento de Antígona fique sem castigo. Ele observa os laços sanguíneos que o ligam à Antígona, por ser ela filha de Jocasta, mas que nem por isso a moça escapará à morte mais infame. Creonte condena Antígona à morte, dizendo ainda que jamais permitirá que uma mulher o governe e acusa também Ismene de ser uma traidora. Repare aí que já serão então duas as transgressões de Creonte para com os deuses - e considerando o contexto da peça, é importante ter em mente que essas desobediências custarão um preço alto.
Terceiro episódio: O noivo de Antígona tenta colocar algum juízo na cabeça do rei
Aqui as coisas se complicam. Acontece que Hemon, filho de Creonte, é noivo de Antígona (sim, muita endogamia em Tebas). Em sua entrada, Hemon se mostra meio frouxo, afirmando que nenhum casamento estará acima da autoridade de seu pai. Depois de ouvir mais um discurso de Creonte, no entanto, Hemon retoma o motivo de sua ida até a presença do pai: contar que o povo está intimidado por Creonte, tanto pelo decreto quanto agora, por condenar Antígona à morte. A sociedade tebana, além disso, também vê no ato da moça uma justa razão, afinal, não importa de que lado da luta Polinices estava, ele é um filho da cidade e merece, portanto, um sepultamento justo.
Pelo que já vimos até aqui de Creonte é desnecessário dizer que ele fica furioso, afirmando que não é a cidade que lhe dirá como agir, afinal de contas, a cidade pertence a ele e não o oposto. Sinto que Creonte se daria bem como prefeito de algumas das cidades em que já morei, que pensam exatamente assim também.
Depois de muita discussão, Hemon faz uma premonição funesta: Antígona morrerá, sim, mas ao morrer, matará outro. Creonte entende isso como uma ameaça a si próprio, de tão megalomaníaco que é. Claro que Hemon fala, na verdade, de si mesmo, mas furioso, Creonte manda buscar Antígona para que morra na frente de seu noivo. Hemon reforça o que disse anteriormente:
De maneira alguma! Não contes com isso.
Ela não morrerá na minha presença
[e tu não verás mais
o meu rosto com os teus olhos
Exibe tua loucura a quem dos teus se
disponha a vê-la.
A loucura do tirano vai, de cada vez, se tornando mais e mais acentuada. Quando o corifeu (o primeiro do coro) pergunta que morte Creonte dará à Antígona, ele revela seu plano macabro: vai prendê-la viva numa prisão lavrada em rocha. Em outras palavras, a moça será emparedada. E ainda debocha: “lá ela poderá invocar a Morte, único deus a quem rende culto”.
Quarto Episódio: O lamento de Antígona
Hora de cumprir as ordens de Creonte. O Corifeu, que representa o pensamento também da sociedade, observa para Antígona que o ato dela foi piedoso sim, mas o governante não admite insubordinação. Com isso, ele lembra o mesmo que foi dito por Hemon, de que embora não seja capaz de entrar em conflito por isso, a cidade vê a atitude de Antígona como correta. Enquanto a moça se lamenta, Creonte a interrompe dizendo que se todas as canções dos condenados à morte fossem tolerados, eles não acabariam nunca. Sim, ele não tem nenhuma paciência.
Há aqui uma fala de Antígona que acho profundamente sensível e que explica sua obstinação em enterrar Polinices. Ela diz que se fosse um marido ou filho, ela não desobedeceria ao decreto, pois poderia casar-se de novo ou ter outros filhos, mas tendo os pais mortos, ela não terá mais irmãos, portanto essa lei a orienta. Porém, se Antígona foi obstinada em sepultar o irmão, Creonte também o é em castigá-la. A moça é levada para o emparedamento.
Quinto Episódio: Tirésias fala com Creonte
No último episódio, o adivinho Tirésias reaparece, como em Édipo Rei, para avisar a Creonte que sua sorte está por um fio. Ele explica que a ordem de não sepultar Polinices vai levar Tebas à ruína, já que os deuses não recebem as súplicas da cidade, porque ela está manchada pelo sangue de um homem ultrajado. Tirésias diz a Creonte para pensar melhor sobre essa ordem, que não é preciso matar quem já morreu.
Leva um doce quem acertar a reação adequada de Creonte. Se você supôs que ele finalmente deu ouvidos à autoridade do cego sacerdote, perdeu a oportunidade de ganhar uma balinha, porque na verdade ele ficou - mais uma vez - enfurecido e achando que a cidade toda está conspirando contra ele, incluindo o sacerdote. E o rei responde, totalmente articulado:
Nem se as águias de Zeus quiserem carregar
carniça roubada
ao trono do deus supremo, nem assim
permitirei, assustado de sacrilégio
que esse seja enterrado.
Muito dentro do tom, como vocês podem ver. Tirésias, no entanto, não dá o braço a torcer e lembra que, se Creonte hoje é o governante, é graças a ele também. Como Creonte insiste em não obedecer os ritos ancestrais, Tirésias roga a praga: o sol não completará muitas voltas em seu carro antes que Creonte tenha que entregar um morto de seu próprio sangue como paga por outros mortos. Repare o plural, Creonte não será punido apenas pela desonra a Polinices, mas também por Antígona.
Finalmente, Creonte decide ceder, porque “é inútil combater o inevitável” mas é tarde. Chega um mensageiro avisando que Hemon, o filho amado de Creonte, cometeu suicídio, confirmando o vaticínio que ele mesmo fez ao pai . O jovem fez isso depois de saber que Antígona também já estava morta, “suspensa pelo pescoço, enforcada com um lenço finíssimo de linho”. Acho coerente Antígona ter tomado a decisão de abreviar o próprio sofrimento, em vez de esperar que o emparedamento terminasse com sua vida, lentamente. Não bastasse, depois de saber da morte do filho, Eurídice, esposa de Creonte, também tirou a própria vida - mas antes lançou toda sorte de maldições contra o marido, e convenhamos, na antiguidade grega elas costumavam funcionar.
Ao saber que perdeu a família, Creonte se faz de sonso e pergunta, como se não tivesse sido avisado tantas vezes porque a Morte o fustiga tanto. Mas depois de mais alguns diálogos, Creonte reconhece sua culpa. Mas é tão tarde, e vale o que diz o Corifeu: a prudência é, em muitas, a primeira das venturas.
Antígona: Justiça, Honra e Poder
O que mais me chama atenção em Antígona é a discussão da tríade justiça, honra e poder que Sófocles faz, entendendo honra aqui não no sentido dado pelos filmes de guerra, mas no sentido de honrarmos alguém, daquilo que a irmã tenta fazer pelo seu familiar.
A teimosia de Creonte e a obstinação de Antígona representam também um caráter marcante de uma mudança de mentalidade, em que os deuses - na dramaturgia grega - já não interferem tão diretamente e a disputa se dá entre os elementos que compõem o Estado e a sociedade civil de modo geral.
Espero que você tenha gostado dessa leitura e, se ainda não tiver lido, que leia a peça também - provavelmente você vai gostar mais dela. Nos vemos na próxima edição.
Com carinho,
Rute
Essa foi a segunda edição dos Cadernos de Dramaturgia, uma seção dentro da Noturno Girassol. Aqui eu falo sobre peças que leio e, com sorte, sobre montagens também. Se você encontrou essa edição por acaso ou recebeu de alguém, considere assinar pra receber a próxima direto no seu e-mail.